13 dezembro 2019
Tirado ao fundo
Como tantos outros milhões de gente, estendida sobre o tédio do meu dia, deslizava mural abaixo olhando as novas dos outros, amigos e todos aqueles que por alguma razão pareceram poder sê-lo.
Uns apresentam naturezas mortas sobre as suas mesas de pasto, todo o tipo de coloridos e combinações alimentícias prontas a entregar à posteridade de um segundo na internet, com expressivas legendas de contentamento. O prato aparece sempre cheio, vibrante, na posição de presa fácil, sem qualquer ar sacrificial e há sempre quem se lambuze pelos dedos deixando mensagens salivares e pedidos de determinação da origem do manjar - se é que a legenda já não tratou disso.
Há as notícias e os cronistas de ocasião, arreigados no seu senso crítico, uns mais fulminantes que outros, uns mais inteligentes que outros, uns menos vocais contudo desejosos de fazer parte da cadeia de disseminação. Notícias do mundo da corrupção, muitas vezes política, dos escândalos e polémicas viçosas, frescas petições e manifestações, notícias dos acidentes, dos crimes ambientais, das injustiças e das guerras, dos prémios e consagrações, obituários seguidos de uma torrente de clamores.
Há os que partilham a família mais pequena, humana ou animal, para que todos se compadeçam com a candura da inocência e recebam afabilidade de polegar para cima.
Há ainda os auto-retratos instantâneos, a mostrar o evento, o lugar, o novo corte, o declive, a sensualidade, a alegria. Os auto-retratos infelizes, quase inexistentes, são a certeza de que quase todos se envergonham da sua tristeza e se persuadem que uma boca arreganhada a enfrentar as lentes pode trazer benefícios efectivos no seu espírito já que está para ser inventada melhor representação de virilidade anímica.
Há os que insinuam qualquer coisa sobre outro ou descascam nele mesmo para tribalizar as hostes, mesmo que se convençam de que é apenas para expressarem opinião e que o ralhete é merecido - ouvem-se a eles próprios para iniciar uma discussão que nunca terminará.
Há os que celebram o aniversário e recebem miríades de desejos iconográficos de mulheres de saia bailando, cabeças amarelas a soprarem línguas-de-sogra, vórtices de corações, estrelas e cometas, fadas, arco-íris, unicórnios, um cortejo de congratulações coloridas.
Dei largas à minha bisbilhotice em rede, como uma pescadora de plástico num oceano de fraudulenta companhia e, um dia, emaranhei-me na fotografia de uma desconhecida. Ela cumpria quarenta anos e tinha o mesmo nome que me deram. Aludia aos anos que intermediavam aquele momento esboçando gratidão e a nostalgia para o ar dos seus leitores. No seu retrato tirado ao baú, a pele era trigueira, uma inequívoca aparência de férias ao sul. Tinha os antebraços nus pousados sobre uma mesa de esplanada, os cabelos negros petrolíferos a enquadrar o sorriso festivo da sua revolução solar distando a profundidade da mesa quanto ao seu interlocutor armado com sais de prata. No fundo, outros veraneantes conversavam surdamente com os respectivos acompanhantes. Apenas um se apresentava inteiro, clandestinamente participando do retrato, sobre o lado esquerdo num perfil sorridente. Dei pelos meus olhos a pestanejar convulsivamente, como se recusassem acreditar no que viam. Era ele, o homem que deixara há tantos anos para se tornar um ente insular e decididamente fantasmagórico, o homem que me penhorou a inocência muito cedo e que ando agora a tirar do prego. Eu mesma deveria estar naquela fotografia, certamente, por detrás da cortina de cabelo e corpo. A desconhecida aniversariante obliterara-me e restou apenas o meu pai sorrindo.
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