13 março 2014

salve, hélia correia

No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida
I

Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia.

Eu, quando tenho de falar com alguém do género bancário ou fiscalista, aviso logo que sou das “Humanidades”, isto é, completamente ignorante. E peço caridade lexical, paciência: essas virtudes superiores. Nunca se fica muito esclarecido, mas trata-se de não incomodar. Um resto de amor-próprio determina que escapemos depressa do cenário. A humilhação chama pela maldade e eu resplandeço quando ocasionalmente alguém me diz uma palavra cara que posso decifrar rapidamente, emudecendo o interlocutor: “Sei o que significa, vem do grego”, disparo. E já não é uma conversa. É uma espécie mitigada de motim. O anedotário da revolução francesa regista que os motins não causam dano, são como uma pequena bebedeira. Não vale a pena perder tempo com motins. Não vale, aliás, a pena perder tempo. Estrebuchamos no vazio e alguém ri.

Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.


II

Vejo como anda gente a reclamar que se dê espaço à imaginação. É uma herança daquele Maio de 68 que a queria no poder e fez com isso uma bonita frase. Aliás, não houve muito muito mais que herdar. Mas enquanto os filósofos confiam nos benefícios do receituário, longe deles e do fumo dos Gauloises está à espera a serpente,latet anguis. Os Le Pen crescem sem filosofia. E a imaginação, que faz? Distrai. Melhor será dizer que nos engana. A alegoria cibernética que eu acima explorei trouxe um sorriso a este texto enquanto texto. E mais além não vai. Fornece uma dinâmica de jogo e entretém vagamente até cansar.

Sim, porque é de cansaço que se trata. De exaustão, no sentido de não termos nem uma gota que nos dessedente. Eu tenho o pensamento habituado à escrita metafórica e aqui estou a criar uma imagem enganosa. Se procurar um modo de dizer exacto, brutal, limpo, em que a palavra perca os seus ademanes de palácio, não acharei em “exaustão” o termo certo. Ninguém caminhou tanto que se sinta quase a morrer por desidratação. No “país de poetas”, caímos automaticamente numa coloração vocabular que muito raramente dá bons textos. De tão familiar, não a estranhamos. Até deixamos que trabalhe contra nós.

Por que aceitamos que se fale, por exemplo, nas “gorduras do Estado”? O Estado não tem metabolismo. Tem excesso de despesas, muitas delas em mordomias e em disparates.Um Estado não “emagrece”: corta nos gastos, e a escolha para os cortes tem critérios, e os critérios não se aplicam ao acaso. Aquilo que se chama ideologia, a moldura mental com que um comum destino se interpreta e planeia, decide a escolha. E escolhe-se cortar naquilo que é empecilho ao projecto, no que se quer extinguir ou, pelo menos, fazer partir para onde não se torne visível. Com a metáfora sobre o corpo obeso dá-se a volta ao assunto, transformando-o em algo humanizado e censurável. Fica fora do alcance da razão — nos labirintos do imaginário, naquilo que culturalmente assimilámos a ponto de esquecer — a simpatia pela causa. Dentro de nós, a ideia do descuido, da glutonice, da preguiça, enfim, do Sul, facilmente coabita com a ideia de punição e de dieta rigorosa. Tomar medidas para emagrecer é justo e bom. Se implica sacrifícios, são sacrifícios de ginásio, desses que conferem certa estética ao suor. Só um bulímico se recusa a entender e a estimar um regime que assegura saúde e elegância a quem o siga. Alcança longe, a manha da metáfora.

É necessário estarmos prevenidos contra os efeitos destas redacções. Há, no deslize para as figuras de compêndio, quase um tropismo, uma procura de consolo. Isso empobrece a agudeza do olhar. Sei que aquilo que eu disse muita vez — “Hoje o nosso inimigo não tem rosto”, para significar que é mais difícil reconhecê-lo, assinalá-lo e confrontá-lo, não é só uma frase retórica e inútil — partilha essa tendência viciante para a baixa literatura que nos dá a ilusão de intervir pela palavra. O que a expressão “sem rosto” cria é uma distância e, mais que uma distância, uma abstracção. Junta-se aos nossos medos ficcionais. Começámos com o Feiticeiro de Oz, vamos ao Orwell e a lição que retiramos é que, no fim, acaba tudo bem, os livros fecham-se e as crianças vão para a mesa. Bettelheim explicou que serventia têm estes entrechos. Um adulto já não beneficia com semelhante kit de aprendizagem. Corre o risco de hipnose. Vai pelo sonho. Estou convencida de que sonhar leva a que a musculatura se atrofie.

Temos que chegue de pequena literatura. Os governantes descobriram o filão e desataram a usar sem pejo os melhores truques da Academia. Metaforizam desalmadamente e é com muito sucesso que recorrem aos artifícios da prosopopeia, como novos Pessoas ou Camões. O que é o Bojador ao pé de um Estado pejado de gorduras, de mercados que são como velhos senhores que não tomaram a valeriana e atiram os criados escada abaixo nos maus humores da indigestão? Que mulher fabulosa é essa Europa a quem nós temos simplesmente de agradar sem compreender bem os seus caprichos? A Rainha de Copas da Alice, que tanto atormentou a minha infância porque gritava “Cortem-lhe a cabeça!” sem que se vislumbrasse uma razão, grita outra vez. Mudou apenas de idioma. Eles declaram: “Ela quer”, “ela ameaça”, “ela não anda nada satisfeita” e a cada um desses avisos nós levamos os dedos ao pescoço, com receio de que a cabeça já não esteja lá.

Quanto a enredos, tecem-nos com brilho, sobre modelos de novecentos. Por que tenho pensado ultimamente no Conde de Monte-Cristo quando leio os jornais? Porque vemos enredo semelhante, com o injustiçado que enriquece e acaba por ser dono do destino daqueles que o maltrataram. Edmond Dantès agora é angolano. Naturalmente, há um pedido de desculpas, uma genuflexão, talvez. The end?

Eles, os novéis cultores da ficção, vão-se referindo muito à “narrativa”. Por “narrativa” hão-de querer dizer o encadeamento temporal das acções. Mas vão mais longe ao conseguirem sugerir a malignidade da intriga, a vontade de drama que é aquilo que enche o texto de pathos e produz no leitor surtos de acidez moral. Conhecem bem o ofício: não se deixam manietar pelas questões da lógica, da verosimilhança ou da coerência. Mentem com toda a glória, porque não? Não é toda a grande obra uma mentira? É só preciso que quem mente minta bem. Minta na sua glória de poeta. Os governantes mentem com virtude.

E, no entanto, as pessoas não apenas clamam contra o prodigio criativo como até se declaram indignadas. Por causa da palavra “indignação” é que me pus a rabiscar o texto. Porque é uma palavra extraordinária. Deu a volta por dentro de si mesma para contrariar o seu significado. E tratou disso logo que nasceu, não houve aqui evolução semântica. No rigor do latim, que julgaríamos incontornável, vemos surgir uma palavra derivada pela prefixação do in negativo, que transforma um conceito no oposto. “Indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. O indignado, dizendo-se indignado, renega a sua condição, rebela-se. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida.

Isto pode parecer prosa de exaltação, mas não passa de simples constatação linguística. Provavelmente precisamos disto. Enquanto os outros fazem literatura e a temática Dickens encontra no país uma oportunidade para se impor, tornemos nós ao simples, ao sensato, ao denso e intenso uso das palavras. Com o abuso do estilo, fomos deixando para trás a frescura das origens, a fisicalidade da palavra, ela que é parte do real e nele se inscreve. Sei que o caminho para a abstracção foi útil e foi bom porque nos fez aceder, por exemplo, aos conceitos. Mas, mutatis mutandis, assim como Hölderlin teve certo desígnio ao traduzir Antígona, também eu gostaria de repor a primeira energia da linguagem, recordando a nudez inicial. Falemos de “catarse” — que se aplica à gritaria das manifestações. Serve a catarse para energizar? Não serve. Uma catarse é má medida. Uma catarse era concretamente vómito de ressaca. O alívio de estômago a seguir a uma bebedeira. Era deitar para fora e ficar limpo. Transposta para a lição do teatro, assim durou, implicando sempre uma transformação. É isso o que se quer saindo à rua? Que a vivência nos lave do mal-estar? Falar não deve aliviar do mal. Pelo contrário, deve torná-lo inteligível e discutível. Torná-lo, a bem dizer, manipulável. Um material exterior e que, com esforço, consigamos dobrar. Nós precisamos tanto de catarses como de sonhos. Temos de levar outra intenção para as ruas.

O que é manifestar? É dar a ver. Dar a ver com as mãos. Não necessariamente mãos em festa — a etimologia é duvidosa. Provavelmente mãos conflituantes. Há com certeza uma finalidade para juntar num desfile a multidão, mas nós não somos já gente de ritos, não somos gente de re-ligação. Temos de inaugurar tudo novamente, a começar pelas frases de incentivo, pois as que ouvimos, de tão velhas, tão usadas, perderam o vigor. Estão transformadas em ladainhas de beatitude. Aliás, as mais das vezes não serviam como motores de mobilização, fracas de rima, rastejantes de sentido. Mas enquanto se caminhou a passo forte, enquanto, a velocidades várias, se manteve uma leitura histórica das coisas, uma certeza de alma potenciava aquele vocabulário esmaecido.

Se hoje as pessoas continuam a marchar é porque, à força de repetição, os sapatos estão enfeitiçados. Não é de dança, mas de espasmo, o movimento. O grito que invectiva já não faz estremecer o seu destinatário. O seu destinatário olha para “aquilo”, chama-lhe “aquilo”, e vai à sua vida. Mostra um grande talento para apoucar. Nós que talento revelamos? O da fé? O da brava teimosia? Repetimos os nossos argumentos… “até à náusea”: assim acaba a frase que herdámos da retórica latina. Não é possível refazer a língua? É, sim.

A nova poesia portuguesa já deitou as metáforas ao lixo. Está cheia de real e de um real sujeito a um olhar e a uma oficina que lhe conferem, numa mesma nota, estranheza e ressonância familiar. E há jovens cientistas muito atentos ao uso não utilitário da palavra, mais atentos, direi, do que muitos literatos. Eu tive o privilégio de falar, para uma sala de lotação superesgotada, sobre a pouca importância do enredo nos textos. Isso interessou-os extraordinariamente. Num mundo apoquentado por gravatas, eu vejo os meus amigos estudantes e doutorandos de Cultura Clássica, em não pequeno número, dispostos a cruzarem experiências e saberes como se tudo começasse agora e a Antiguidade nos tocasse. Se deles não vier o apetrecho que nos ensine a ver, e a ouvir, e a clamar com outro assomo de energia, se aplicarmos ao “hoje” o alfabeto que aplicámos ao “ontem”, nada lemos.


III

A nitidez que existia nas velhas ditaduras, os claramente vistos Bem e Mal, a ausência de dúvida nas causas, os perigos a que o corpo se arriscava, alimentavam plenamente a alma. Não era porque o inimigo tinha um rosto que a resistência se tornava articulada com a própria vida, como uma moral. Não tinham rosto os espiões da PIDE. Havia nomes, sim. Mas também temos nomes agora. A diferença é que o novo poder não ameaça directamente com prisão e com tortura. Por um reflexo quase biológico, a violência, o assassinato, o corte da estrutura vital cria mais vida. Era esse o princípio que levava uma revolução a triunfar.

O grande golpe é o que se dirige à alma. O meu sentido de “alma” é o que vem da anima latina, claro está, a instilação da vida que nos torna activos e pensantes. Qualquer torcionário aprende cedo que a alma não se tira com a faca mas com manobras de desorientação e de abatimento. O sopro anímico extingue-se depressa, bem mais depressa que o bater do coração, e sem sujar. “Desanimados”: eis a nossa condição. Bem mais difícil de remediar do que a de meros “oprimidos”, pela diferença que existe entre ter ânimo e não ter.

O ânimo requer o alerta dos sentidos. Não por caso, entre os soldados na batalha, alma era sinónimo de coragem. É de coragem que necessitamos, da coragem de ver e rejeitar. Não vamos pelo sonho. Assistimos, tempos atrás, a uma breve ardência, quando se encheram praças a Oriente — chamou-se a isso a Primavera Árabe — e o mundo pareceu fácil de abraçar. Víamos o real? Não, não o víamos. E, no entanto, ele move-se sem nós. Move-se sem parar. Quando acordamos, não temos senão cinza nos cabelos. Há um gesto possível? Há um gesto. Pelo menos, sacudi-la. Pelo menos, neutralizar a fábula, desmascarar os efabuladores. Ainda não conhecemos os seus rostos. Somente os rostos dos pequenos servos. Conhecemos, porém, os artifícios.

Por que usam a palavra “austeridade”? Porque há nela uma certa ressonância de coisa justa, de atitude respeitável. Alexandre Herculano foi austero. Sóbrio, frugal, um tanto seco na expressão, honesto, incorruptível — isso mesmo. A austeridade é um estádio a que se chega num percurso moral muito esforçado. É um modo de vida, uma atitude pela qual alguém opta, numa escolha inteiramente pessoal, quando recusa render-se ao luxuoso e ao supérfluo. Classificar alguém de “austero” significa que lhe atribuímos qualidades pouco usuais no cidadão vulgar. Ouvimos a palavra e logo o nosso dicionário subconsciente nos assinala que é para respeitar, acatar e temer. Se há uma “austeridade” que castiga é porque andámos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade, não há “austeridade” aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido, também, da inocência. Estamos a pagar o quê, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? Devo dizer aqui que o consumismo me desperta uma viva repugnância, que admiro e sigo, porque quero, a vida “austera”. Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto, o gasto vil, onde se oculta?

Não, não nos pedem a “austeridade”. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs? Ficaremos agora deitados no caixão, narcolépticos, à espera de algum príncipe?

Vamos de história em história, adormentados.

Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia”, palavra vinda de tão longe, trabalhada, moldada, experimentada tanta vez. Parece ter sofrido uma anquilose, uma patologia da velhice que a transformou numa entidade rígida. E o conceito que lhe corresponde imobiliza, prende, como num propósito de teia. Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” — quando os factos lhes dão toda a razão. Porque a democracia está disforme, ainda que insistamos em louvá-la.

Se olharmos sem a ilusão veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o seu processo ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superioridade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia.

Como se leva isso à prática não sei. Mas sei como se leva ao pensamento. E sei que o pensamento é o que faz levantar a cabeça. Estamos num tempo novo, rodeados por luz e escuridão para as quais não temos nem mapa nem farol. Temos modelos tão inspiradores como remotos. Certo é que a palavra é a obra do humano e a palavra não cessa de existir. Com palavras se fazem os fascismos, e Magnas Cartas e as Constituições. Cultivá-las, estudá-las, não nos salva talvez. Mas dignifica-nos. E se podemos aprender algo com o passado, antes de o perdermos completamente de vista, é que a dignidade se conquista e que a indignação a isso ajuda.

Hélia Correia, "Com respeito às palavras"
https://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=329736

12 março 2014

Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente

Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos.
O que reúne aqui e agora os signatários, que têm posições diversas sobre as estratégias que devem ser seguidas para responder à crise económica e social, mas que partilham a mesma preocupação quanto ao peso da dívida e à gravidade dos constrangimentos impostos à economia portuguesa, é tão-somente uma tomada de posição sobre uma questão prévia, a da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação.
O que a seguir se propõe tem sempre em atenção a necessidade de prosseguir as melhores práticas de rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais, bem como a discussão de formas de reestruturação honrada e responsável da dívida no âmbito de funcionamento da União Económica e Monetária, nos termos adiante desenvolvidos.
 A actual dívida é insustentável na ausência de robusto e sustentado crescimento
A crise internacional iniciada em 2008 conduziu, entre outros factores de desequilíbrio, ao crescimento sem precedentes da dívida pública. No biénio anterior, o peso da dívida em relação ao PIB subira 0,7 pontos percentuais, mas elevou-se em 15 pontos percentuais no primeiro biénio da crise. No final de 2013 a dívida pública era de 129% do PIB e a líquida de depósitos de cerca de 120%. O endividamento externo público e privado ascendeu a 225% do PIB e o endividamento consolidado do sector empresarial a mais de 155% do PIB. A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas, como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problemas específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves.
 A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.
A nossa competitividade tem uma base qualitativa demasiado frágil para enfrentar no futuro a intensificação da concorrência global. É preciso uma profunda viragem, rumo a especializações competitivas geradas pela qualidade, pela inovação, pela alta produtividade dos factores de produção envolvidos e pela sagaz capacidade de penetração comercial em cadeias internacionais ou nichos de mercado garantes de elevado valor acrescentado.
Trata-se certamente de um caminho difícil e de resultados diferidos no tempo. A sua materialização exige continuidade de acção, coerência de estratégias públicas e privadas, mobilização contínua de elevado volume de recursos, bem como de cooperação nos mais diversos campos de actividade económica, social e política. Será tanto mais possível assegurar a sustentabilidade da dívida, quanto mais vigoroso for o nosso empenho colectivo no aproveitamento das oportunidades abertas pela reestruturação no sentido de promover esse novo padrão de crescimento.
É imprescindível reestruturar a dívida para crescer, mantendo o respeito pelas normas constitucionais
Deixemo-nos de inconsequentes optimismos: sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento, nem sequer fazê-lo beneficiar da concertação de propósitos imprescindível para o seu êxito. Esta questão é vital tanto para o sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.
Sem reestruturação da dívida, o Estado continuará enredado e tolhido na vã tentativa de resolver os problemas do défice orçamental e da dívida pública pela única via da austeridade. Deste modo, em vez de os ver resolvidos, assistiremos muito provavelmente ao seu agravamento em paralelo com a acentuada degradação dos serviços e prestações provisionados pelo sector público. Subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades, de tudo resultando considerável reforço dos riscos de instabilidade política e de conflitualidade social, com os inerentes custos para todos os portugueses.
Por outro lado, a economia sofrerá simultaneamente constrangimentos acrescidos, impeditivos em múltiplas dimensões do desejável crescimento do investimento, da capacidade produtiva e da produtividade, nomeadamente pela queda da procura e desestruturação do mercado, diminuição da capacidade de autofinanciamento, degradação das condições de acesso, senão mesmo rarefacção do crédito da banca nacional e internacional, crescente liquidação de possibilidades competitivas por défice de investimento e inovação. Por maioria de razões, o ganho sustentado de posições de referência na exportação ficará em risco e inúmeras empresas ver-se-ão compelidas a reduzir efectivos.
Há que encontrar outros caminhos que nos permitam progredir. Esses caminhos passam pela desejável reestruturação responsável da dívida através de processos inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e responsabilidade.
Há alternativa.
A reestruturação deve ocorrer no espaço institucional europeu
No futuro próximo, os processos de reestruturação das dívidas de Portugal e de outros países – Portugal não é caso único – deverão ocorrer no espaço institucional europeu, embora provavelmente a contragosto, designadamente dos responsáveis alemães. Mas reacções a contragosto dos responsáveis alemães não se traduzem necessariamente em posições de veto irreversível. Veja-se o que vem sucedendo com a Grécia, caso irrepetível, de natureza muito diferente e muito mais grave, mas que ajuda a compreender a lógica comportamental dos líderes europeus. Para o que apontam é para intervenções que pecam por serem demasiado tardias e excessivamente curtas ou desequilibradas. Se este tipo de intervenções se mantiver, a União Europeia correrá sérios riscos.
Portugal, por mais que cumpra as boas práticas de rigor orçamental de acordo com as normas constitucionais – e deve fazê-lo sem hesitação, sublinhe-se bem –, não conseguirá superar por si só a falta dos instrumentos que lhe estão interditos por força da perda de soberania monetária e cambial. Um país aderente ao euro não pode ganhar competitividade através da política cambial, não lhe é possível beneficiar directamente da inflação para reduzir o peso real da sua dívida, não pode recorrer à política monetária para contrariar a contracção induzida pelo ajustamento e não tem banco central próprio que possa agir como emprestador de último recurso. Mas se o euro, por um lado, cerceia a possibilidade de uma solução no âmbito nacional, por outro, convoca poderosamente a cooperação entre todos os Estados-membros aderentes. A razão é simples e incontornável: o eventual incumprimento por parte de um país do euro acarretaria, em última instância, custos difíceis de calcular, mas provavelmente elevados, incidindo sobre outros países e sobre o próprio euro. Prevenir as consequências nefastas desta eventualidade é, de facto, um objectivo de interesse comum que não pode ser ignorado.
 Após a entrada em funções da nova Comissão Europeia, deverá estar na agenda europeia o início de negociações de um acordo de amortização da dívida pública excessiva, no âmbito do funcionamento das instituições europeias. Na realidade, esse processo já foi lançado e em breve iniciará o seu caminho no contexto do diálogo interinstitucional europeu, entre Comissão, Conselho e Parlamento. É essencial que desse diálogo resultem condições fundamentais para defender sem falhas a democracia nos Estados-membros afectados, como valor fundacional da própria União.
Três condições a que a reestruturação deve obedecer
A Comissão Europeia mandatou um grupo de peritos para apresentar, designadamente, propostas de criação de um fundo europeu de amortização da dívida. O seu relatório será publicado antes das próximas eleições para o Parlamento Europeu. Essas propostas juntar-se-ão a várias outras formuladas nos últimos quatro anos. Recorde-se que a presente tomada de posição visa apenas a questão prévia da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação. Serve-nos de guia o exposto sobre a dívida portuguesa, mas pensamos que as condições adiante sugeridas defendem também os melhores interesses comuns dos países do euro.
Tendo presente que a capacidade para trazer a dívida ao valor de referência de 60% do PIB depende fundamentalmente de três variáveis (saldo orçamental primário, taxa de juro implícita do stock de dívida e taxa nominal de crescimento da economia), identificam-se três condições a que deve obedecer a reestruturação da dívida.
1) Abaixamento da taxa média de juro
A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida, de modo a aliviar a pesada punção dos recursos financeiros nacionais exercida pelos encargos com a dívida, bem como ultrapassar o risco de baixas taxas de crescimento, difíceis de evitar nos próximos anos face aos resultados diferidos das mudanças estruturais necessárias. O actual pano de fundo é elucidativo: os juros da dívida pública directa absorvem 4,5%. do PIB. Atente-se ainda no facto de quase metade da subida da dívida pública nos últimos anos ter sido devida ao efeito dos juros.
2) Alongamento dos prazos da dívida
A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais anos. A nossa dívida tem picos violentos. De agora até 2017 o reembolso da dívida de médio e longo prazo atingirá cerca de 48 mil milhões de euros. Alongamentos da mesma ordem de grandeza relativa têm respeitáveis antecedentes históricos, um dos quais ocorreu em benefício da própria Alemanha. Pelo Acordo de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, de 27 de Fevereiro de 1953, a dívida externa alemã anterior à II Guerra Mundial foi perdoada em 46% e a posterior à II Guerra em 51,2%. Do remanescente, 17% ficaram a juro zero e 38% a juro de 2,5% Os juros devidos desde 1934 foram igualmente perdoados. Foi também acordado um período de carência de cinco anos e limitadas as responsabilidades anuais futuras ao máximo de 5% das exportações no mesmo ano. O último pagamento só foi feito depois da reunificação alemã, cerca de cinco décadas depois do Acordo de Londres. O princípio expresso do Acordo era assegurar a prosperidade futura do povo alemão, em nome do interesse comum. Reputados historiadores económicos alemães são claros em considerar que este excepcional arranjo é a verdadeira origem do milagre económico da Alemanha. O Reino Unido, que alongou por décadas e décadas o pagamento de dívidas suas, oferece outro exemplo. Mesmo na zona euro, já se estudam prazos de 50 anos para a Grécia. Portugal não espera os perdões de dívida e a extraordinária cornucópia de benesses então concedida à Alemanha, mas os actuais líderes europeus devem ter presente a razão de ser desse Acordo: o interesse comum. No actual contexto, Portugal pode e deve, por interesse próprio, responsabilizar-se pela sua dívida, nos termos propostos, visando sempre assegurar o crescimento económico e a defesa do bem-estar vital da sua população, em condições que são também do interesse comum a todos os membros do euro.
3) Reestruturar, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB
Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida em 60% do PIB. É diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB. Nestes termos, mesmo a própria Alemanha poderia beneficiar deste novo mecanismo institucional, tal como vários outros países da Europa do Norte.
Os mecanismos da reestruturação devem instituir processos necessários à recuperação das economias afectadas pela austeridade e a recessão, tendo em atenção a sua capacidade de pagamento em harmonia com o favorecimento do crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional. Se forem observadas as três condições acima enunciadas, então será possível uma solução no quadro da União e da zona euro com um aproveitamento máximo do quadro jurídico e institucional existente.
A celeridade da aprovação e entrada em funcionamento do regime de reestruturação é vital. A única maneira de acelerar essa negociação é colocá-la desde o início no terreno firme do aproveitamento máximo da cooperação entre Estados-membros, de modo a acolher o alongamento do prazo de reestruturação, a necessária redução de juros e a gestão financeira da reestruturação, tendo em atenção as finalidades visadas pelos mecanismos de reestruturação.
Cada país integraria em conta exclusivamente sua a dívida a transferir e pagaria as suas responsabilidades, por exemplo, mediante a transferência de anuidades de montantes e condições pré-determinadas adequadas à capacidade de pagamento do devedor. As condições do acordo a estabelecer garantiriam a sua estabilidade, tendo em conta as responsabilidades assumidas por cada Estado-membro. Deste modo, a uma sã e rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais acresceria o contributo da cooperação europeia assim orientada. As condições relativas a taxas de juro, prazos e montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo pesado endividamento externo.
O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão Europeia. Fomos claros quanto a condições a que deve obedecer esse processo. A sua defesa desde o início é essencial. O nosso alheamento pode vir a ser fatal para o interesse nacional
A reestruturação adequada da dívida abrirá uma oportunidade ímpar, geradora de responsabilidade colectiva, respeitadora da dignidade dos portugueses e mobilizadora dos seus melhores esforços a favor da recuperação da economia e do emprego e do desenvolvimento sustentável com democracia e responsabilidade social.
Por quanto ficou dito, os signatários reiteram a sua convicção de que a estratégia de saída sustentada da crise exige a estreita harmonização das nossas responsabilidades em dívida com um crescimento duradouro no quadro de reforçada coesão e solidariedade nacional e europeia.
Estes são os termos em que os signatários apelam ao debate e à preparação, em prazo útil, das melhores soluções para a reestruturação da dívida.
Adriano Moreira, Adalberto Campos Fernandes, Adriano Pimpão, Alberto Ramalheira, Alberto Regueira, Alexandre Quintanilha, Alfredo Bruto da Costa, André Machado, António Bagão Félix, António Capucho, António Carlos Santos, António Eira Leitão, António Sampaio da Nóvoa, António Saraiva, Armando Sevinate Pinto, Artur Castro Neves, Boaventura Sousa Santos, Carlos César, Carlos Moreno, Constantino Sakellarides, Diogo Freitas do Amaral, Eduardo Cabrita, Eduardo Ferro Rodrigues, Eduardo Paz Ferreira, Emanuel Santos, Esmeralda Dourado, Eugénio Fonseca, Fausto Quadros, Fernanda Rolo, Fernando Gomes da Silva, Fernando Rosas, Francisco Louçã, Henrique Neto, João Cravinho, João Galamba, João Vieira Lopes, Joaquim  Gomes Canotilho, Jorge Malheiros, Jorge Novais, José Almeida Serra, José, Maria Brandão de Brito, José Maria Castro Caldas, José Reis, José Silva Lopes, José Vera Jardim, José Tribolet, Júlio Mota, Luís Braga da Cruz, Luís Nazaré, Luís Veiga da Cunha, Manuel Carvalho da Silva, Manuel  de Lemos, Manuel Macaísta Malheiros, Manuel Porto, Manuel Sobrinho Simões, Manuela Arcanjo, Manuela Ferreira Leite, Manuela Morgado, Manuela Silva, Mariana Mortágua, Paulo Trigo Pereira, Pedro Adão e Silva, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Pedro Delgado Alves, Pedro Lains, Pedro Marques Lopes, Ricardo Bayão Horta, Ricardo Cabral
Ricardo Paes Mamede, Rui Marques, Teresa Pizarro Beleza, Viriato Soromenho-Marques, Vítor Martins,Vítor Ramalho