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“A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele (...)” (Hannah Arendt)Nas sociedades ocidentais, o discurso sobre a crise da educação tem sido recorrente e tem-se materializado frequentemente na apologia de modelos tradicionais de educação, do regresso às aprendizagens básicas consideradas fundamentais – movimento designado back to basics -, assentes na defesa da recuperação da 'autoridade' do professor e da eficácia do ensino medida em termos de resultados dos alunos – presente, por exemplo, nos rankings das escolas. Atualmente, como mostram as discussões públicas existentes em diferentes países, a questão central é que o projeto de uma escola para todos encontra-se sob contestação e tem sido alvo de redefinições vigorosas e dramáticas. Considere-se o advento do cheque-ensino, a transferência do financiamento público da educação para o sector privado, o padrão crescente da seletividade e da segregação, a nova retórica da accountability e a crescente estandardização das escolas. A tendência de desresponsabilização do Estado pela qualidade do funcionamento da escola pública a par do apoio à privatização da prestação do serviço educativo é apresentada como única solução para os problemas com que se debate atualmente a escola.
O fomento de um ‘mercado da educação’ tem-se traduzido, sobretudo, na subordinação das políticas de educação a uma lógica estritamente económica, no âmbito da globalização; na importação de valores como a competitividade, concorrência ou a excelência; em modelos de gestão empresarial, como solução para a ‘modernização’ do serviço público de educação; e na promoção de medidas tendentes à sua privatização. Neste contexto, o ‘serviço público’ está cada vez mais transformado em ‘serviços mínimos para clientes sem outra opção’, onde o ‘bem comum educativo’ para todos é substituído por ‘bens’ diversos, desigualmente acessíveis e de natureza e qualidade desiguais, com os riscos de exclusão que são inerentes a esta lógica.
As medidas tomadas ou anunciadas recentemente em Portugal no âmbito da educação espelham esta realidade – o anúncio do cheque-ensino, o novo diploma dos contratos de associação, o guião da reforma do Estado – e representam a desresponsabilização do Estado relativamente à educação. Ao mascarar a diluição do serviço público de educação com a retórica da liberdade de escolha, o atual Governo está a demitir o Estado da sua função de provisão pública da educação definida na Constituição. Está também a desistir de dar resposta aos problemas prioritários do nosso sistema de ensino, como o abandono e o insucesso escolares, a desigualdade social no acesso e sucesso escolares ou a questão de uma efetiva autonomia pedagógica (e não burocrática) das escolas e dos professores. A formação inicial de professores está também a ser alvo de medidas que põem em causa a sua natureza e organização, assim como a autonomia das instituições de ensino superior responsáveis por essa formação.
Subjacente a estas medidas está uma desvalorização do trabalho desenvolvido nas últimas décadas pelas escolas, pelos professores e pela sociedade em geral no que diz respeito à educação das crianças, jovens e adultos, à promoção do sucesso educativo e à garantia de acesso de todos a uma educação de qualidade, ignorando os resultados alcançados ou o conhecimento produzido pela investigação no campo da educação. Neste debate, é também preciso ter em conta que diversos estudos internacionais sobre países onde foram implementadas estas medidas – como o cheque-ensino ou as escolas independentes – demonstram que não melhoram a qualidade global e que, pelo contrário, aumentam as desigualdades. Na ausência de um diagnóstico e de decisões baseadas em conhecimentos existentes sobre a realidade do funcionamento do sistema de ensino, torna-se necessária uma reflexão profunda e pública sobre os riscos e implicações das medidas propostas.
Todas estas medidas não representam apenas meras reformas, uma vez que desafiam os próprios princípios fundadores da escola para todos enquanto garante da equidade e da justiça social, e, enfim, da própria possibilidade da democracia: o financiamento estatal da escola pública como forma de garantir que o futuro de nenhuma criança e jovem seja pré-determinado pelas suas origens socioeconómicas; que as crianças e jovens de diferentes origens socioeconómicas devem aprender juntas para que os futuros cidadãos possam escapar aos preconceitos de género, classe, etnia ou credo. A universalidade do acesso, a igualdade de oportunidades e a continuidade dos percursos escolares são princípios fundamentais da escola pública.
Não se trata, como nos querem fazer crer, de uma suposta oposição formalista entre escola pública e escola privada, mas da necessidade de debate sobre as implicações das medidas propostas e em curso, relativamente à missão e responsabilidade social da escola, ao papel do Estado e aos fins da educação numa sociedade democrática. O que está em causa é a forma como a escola desempenha a sua função ou propósitos públicos. Entre o controlo e o centralismo estatal e a privatização da educação existe um imenso espaço de possibilidades, nomeadamente no que diz respeito à construção efetiva da autonomia das escolas.
Seja mascarada sob a pressão da redução dos custos ou submetida às pressões do aumento da seletividade escolar, a educação não pode esperar. Os professores, educadores e investigadores em educação consideram esta uma questão demasiado importante para ser pensada numa lógica dicotómica, empresarial ou de consumo. A escola pública, como espaço de igualdade e pluralidade – como espaço de liberdade – não se resume à questão da liberdade de escolha. A radical liberdade garantida pela existência de serviços públicos de educação reside não na escolha, mas antes na obrigatoriedade de ser e estar com os outros e de com eles fazer mundo comum. É por isso que, como referia Hannah Arendt, a educação é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas ao cuidado dos políticos e dos pedagogos. Toda a sociedade deveria ser chamada a participar neste debate, o que tem sido impedido pela forma como estas medidas têm sido anunciadas e implementadas, sem respeito por uma governação democrática, informada ou minimamente participada. Ou será o ódio da escola pública ‘apenas’ um reflexo do medo da democracia?
Texto elaborado por:
Teresa N. R. Gonçalves, UIED, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa
Mariana Gaio Alves, UIED, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa
Elisabete Xavier Gomes, UIED, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa; Escola Superior de Educação de Lisboa
Nair Rios Azevedo, UIED, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa
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